Negócios, família, amizade e vinho com chocolate
Divagando um pouco num dia entediado, imagino um filme com as cenas a seguir:
Recebo uma ligação de uma pessoa com um certo sotaque estrangeiro, difícil de decifrar, dizendo que outra pessoa, que também não consegui identificar exatamente, havia visto uma palestra minha e que recomendava que ele me procurasse e por isso me ligava. Queria me convidar para um almoço.
O restaurante sugerido era dos bons — gosto de comida — mesmo sem entender bem do que se tratava, mas como sou curioso por natureza, desmarco mentalmente um compromisso desmarcável, e topo o almoço.
No dia, chego cedo ao restaurante combinado, e aguardo pelo meu anfitrião.
Levemente atrasado, aparece um senhor, aparentando uns 70 anos, mais ou menos, que dirige a palavra a mim, se apresenta, conversa com os garçons que o chamam pelo nome, e diz: tenho um pequeno problema, minha empregada tem que sair cedo hoje, e como perdi minha esposa há 18 meses e cuido de nossa cachorrinha, nunca a deixo sozinha… este restaurante não aceita cachorros, mas conheço outro que sim, podemos ir para lá? Concordo, meio que desconfiado do que está acontecendo, mas porque não ir, penso eu. No outro restaurante também não somos aceitos e, ainda desconfiado, aceito irmos almoçar na casa dele. “A empregada pode nos esquentar algo rápido antes de sair”, diz ele.
Entramos os 3 novamente na sua Mercedes e rumamos para a casa dele. Ele vai contando da perda de sua mulher, com quem viveu um amor lindo por 35 anos, morando no Brasil, nos EUA, no Caribe e em Paris, com os olhos marejados de quem está com o coração apertado. Vejo um homenzarão, vivido, experiente, que deve ter sido muito bonito em sua juventude, expondo a sua mais profunda tristeza e enorme saudade da mulher amada, da paixão de sua vida.
Interessante esse senhor, penso eu, enquanto enfrentamos o trânsito paulistano rumo a casa dele e eu penso naquele momento estranho.
Já nos Jardins, bairro mais elegante de SP, ele entra em um prédio simpático, provavelmente daqueles feitos nos anos 70, ainda maiores, mais amplos, construção típica daqueles tempos. Na garagem, vários carrões e uma BM conversível estacionada na sua vaga dupla. “Dei essa BM para minha mulher quando ela parou de fumar”, me diz ele, novamente com olhos cheios de lágrimas…
Subimos e me descubro em um apartamento lindo, extremamente bem decorado e sobre um piano de cauda navego pelas fotografias da família, enquanto meu anfitrião organiza nosso almoço com sua assistente. De fato, em várias fotos se vê um jovem esportista e vigoroso, como eu tinha imaginado. Os lugares que ele mencionara no trajeto estão todos lá. Em outras fotografias, uma lindíssima mulher se sobressai, e imagino se tratar de sua esposa, o que ele confirma quando me pega contemplando as fotos sobre o piano.
Na sala, antes de almoçarmos, fazemos um brinde com um vinho branco especialmente feito para isso. Continuo um pouco desconfiado. Meu celular toca, interrompo o papo. Meu anfitrião vai até a cozinha, coordena as coisas e me convida a matar em um gole só nosso aperitivo para que passemos ao almoço.
Já com uma garrafa de vinho sendo aberta, sentamos à mesa — tomamos inicialmente um caldo delicioso que a moça aquece no microondas — e começamos um papo animado.
Descubro que meu interlocutor quis me conhecer pois falaram para ele que entendo de Geração Y. Ele trabalha com gente e quer entender melhor essa tal de Gen. Y. Mas o papo descamba rapidamente para nossas histórias de vida, a dele, de imigrante fugido da guerra (ou das guerras e dos conflitos humanos), vindo do lado oriental da Europa com seus pais, um jovem adolescente que se cria no Brasil, incorporando rapidamente o espírito brasileiro, se formando no Mackenzie, se tornando esportista e depois um executivo de sucesso, passando pelas mais interessantes empresas da época até que se torna empresário. Dedica um momento especial quando diz: “foi naquele ano que conheci minha mulher, me apaixonei e vivemos um amor maravilhoso por 35 anos… até que o câncer a pegou…”
Do meu lado, relato as histórias da grande mistura que é minha família, com sangue alemão, americano, português, brasileiro e uma pitada de norueguês na geração de meus avós e não demora muito para eu falar do Mr Jens, meu avô aventureiro norueguês, como não poderia deixar de ser. Todas as influências de minha vida estou ali relatando.
O papo segue animado, já com nosso prato principal sendo servido, e a garrafa de vinho pela metade. Falamos mais um pouco de geração Y, de como esses jovens de agora encaram a vida e o trabalho — as fotos do meu anfitrião em cima do piano, quando ele deveria ter mais ou menos a idade da geração Y de hoje, não me saem da cabeça — e novamente descambamos para coisas mais interessantes, como as histórias de guerra que ele conheceu, viveu ou leu, minha origem judaica longínqua e as buscas que tenho feito tentando desvendar os rumos da família, a esposa dele, o Mr Jens… e entre um gole e outro de um simpático Carmenere, navegamos pelas nossas experiências, eu próximo dos meus 50 anos e ele já chegando aos 70.
Sem nunca ter se cruzado, parece que nossos mundos se cruzam. Ele perdeu a mulher mais ou menos na mesma época que perdi meu pai. Ele sozinho, sem filhos, apenas com a sua cachorrinha, tentando buscar energia para seguir adiante. Eu, do meu lado, com minha luta para empreender, para tocar meu negócio e ainda me tornando o único homem da família.
A garrafa de vinho já está quase no fim, o almoço também, mas as histórias ainda não. Quando relato a ele a despedida do meu avô, Mr. Jens, contando que estava a seu lado quando ele se foi, e que ele se despediu me deixando com um sorriso de adeus quando murmurei a ele nos seus minutos finais “fique livre, siga seu caminho, terei saudades, mas ficaria bem”, meu anfitrião engole em seco, mareja os olhos, desvia o olhar, pede desculpas e viaja em seu sofrimento e saudade….
De novo, parece que nossas vidas se cruzam sem nunca terem se cruzado antes.
Saímos rapidamente deste momento profundo, e voltamos para nossas histórias de vida, cheias de aventuras, desafios, realizações, viagens e amores lindos.
Conto da minha mulher, e ele fica me olhando fascinado. Relato a ele nossas viagens de Jeep, conto de nossas dogs, quase nossas filhotas (mais um momento que nossas vidas se cruzam), digo que trabalhamos juntos e que ela é bem mais jovem do que eu, o que me mantém jovem também. Ele me olha, me fita… e pensa.
Bananas flambadas de sobremesa, a assistente se despede, provavelmente pensando: “esses dois nunca se viram, mas parecem amigos de anos conversando…” A cachorrinha dorme, já relaxada com a minha presença, como se também achasse que somos amigos de longa data.
Meu anfitrião me diz: “esse vinho está quase no fim e tem uma coisa que eu e minha mulher adorávamos fazer: beber um vinhozinho comendo chocolate e, em sinal de meu respeito por esse momento, vou pegar um Lindt que tenho guardado aqui e matamos o vinho, ok?”…
Fico ali olhando a cena, sem falar nada, pois uma das coisas que mais gostamos de fazer, minha mulher e eu, é exatamente isso. Se for uma mousse com vinho, fica ainda mais gostoso, comento, relatando a ele a coincidência.
Cena final.
Saboreamos o final do nosso Carmenere com um delicioso Lindt. São quase 4 da tarde, a sexta feira está perdida (ou ganha), minha cabeça inebriada de vinho, chocolate, histórias, encontros e desencontros, e me despeço com um forte abraço ao último gole de um delicioso licor.
Não sei dizer se somos amigos de todo o sempre, ou novos amigos, se foi apenas um encontro profissional, se deste encontro nascerá uma amizade, um negócio, ou se tudo isso ficará apenas na memória de cada um de nós como um daqueles momentos de nossas vidas que, se fossem um filme, a gente adoraria ser o personagem principal.
Não sei dizer se somos amigos de todo o sempre, ou novos amigos, se foi apenas um encontro profissional, se deste encontro nascerá uma amizade, um negócio, ou se tudo isso ficará apenas na memória de cada um de nós como um daqueles momentos de nossas vidas que, se fossem um filme, a gente adoraria ser o personagem principal.